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Sofrimento e Repetição.

Atualizado: 22 de set. de 2024



A história se apresenta tal como a própria vida, como um espetáculo fugaz e móvel, constituído por uma teia de problemas intrinsecamente entrelaçados que podem assumir sucessivamente uma multiplicidade de aspectos diversos e contraditórios.

A história se apresenta tal como a própria vida, como um espetáculo fugaz e móvel, constituído por uma teia de problemas intrinsecamente entrelaçados que podem assumir sucessivamente uma multiplicidade de aspectos diversos e contraditórios. Como abordar esta vida complexa e como fragmentá-la para compreender alguma coisa?


Para o dicionário, sofrer é “sentir dano físico, dor, doença ou castigo, dano moral ou físico resignadamente”. Diante de tal definição, não fica claro que seja o sofrimento um capricho, se é possível ignorá-lo ou não. É óbvio, que é inevitável, mas não é tão manifesto que sejamos reféns de suas neuroses relacionadas. O indivíduo contemporâneo sofre porque não quer sofrer, quer ser sedado, por consequência vive nesse ciclo de angústia e dor. Os sofrimentos são preocupantes quando desproporcionais, seja na duração ou na sua intensidade. Nessa tela, repleta de situações complexas, recorremos às mais diversas estratégias. Utopicamente, a moral e a felicidade, como antagônicos inimigos mortais, agora andam de mãos dadas, se incorporaram, o que passou a ser imoral, é não ser feliz, ou pelo menos, não aparentar se-lo. Passamos de uma civilização de obrigações, responsabilidades e deveres, para uma cultura hedonista, voltada para a satisfação é o prazer. Onde a negação dos desejos era sacralizada, agora temos fugas capitalistas, consumistas, o lugar intocável da privacidade, agora é da publicidade, da exposição, sexualização, violência e banalização dos meios. Não só a felicidade, quanto o mercado da espiritualidade, se transformaram numa das maiores indústrias da nossa época, mas é também, a nova ordem moral. Criamos uma distância onipresente entre o então e o agora, entre a realidade e a fantasia, mais que doe, é doendo, gostamos e gozamos com isso. Existe uma aflição saudável, que por vezes quer escapar, ativadas por drogas psicotrópicas, alucinógenos, jogo, álcool, remédios, pornografia, consumo e outros comportamentos de fuga.


O sofrimento humano, visto a partir da Psicanálise, é inseparável da dor psíquica. Ambos são equiparados, é uma expressão, uma extensão de grande excitação no sistema. Freud falou desse esquema, e da necessidade de manter um equilíbrio. Ou seja, manter uma quantidade de energia razoavelmente estável. Ele apresentou a demanda de sustentabilidade da homeostase, referindo-se a este equilíbrio estável de energia. O princípio do prazer, e do descontentamento, cuja tarefa é manter a homeostase, que e dificultado pelo ''Princípio da Realidade''. Esta gênese, força o sujeito a enfrentar a frustração das suas necessidades, e instala a insatisfação no que acredita ser o seu desejo. Isto se torna necessário para viver em comunidade.


Dor e o sofrimento psíquico se apresentam conceitualizados de quatro maneiras.


(1) Angústia: isto inclui fobias e medo (2) Luto, referindo-se à perda de objetos (3) Culpa, que inclui a presença do masoquismo(4) Gozo, que se refere ao conceito de ''Jouissance'' uma forma especial de sofrimento.


Mas o que é a angústia? 


Do ponto de vista clínico, a angústia trata de um efeito desagradável, cujos impactos aparecem numa parte que chamamos o corpo. Assim, a ansiedade mostra suas repercussões, sobre seu funcionamento e manifestações. É semelhante à emoção do medo, do terror, pavor, pânico e amedrontamento. Estes sentimentos não são estritamente sinônimos de angústia, são fenômenos inter-relacionados, mas diferentes, uma vez que no medo, ao contrário da angústia, o perigo é facilmente identificável. Freud reviu o seu conceito de angústia três vezes durante a sua vida. No entanto, duas coisas permaneceram. Em 1917 em ''Inibição, Sintoma e Angústia'', e em 1932 nas'' Segundas Palestras Introdutórias'' e em 1938, onde disse: ''A angústia continua a ser uma resposta do ''Ego'' ao descontentamento, entendido como um aumento de excitação ou energia''. Primeiro, como o lugar natural da ansiedade. Segundo, descreve a ansiedade: como um efeito provocado pela perda ou separação do objeto. Terceiro, mantém a ideia de ansiedade como um sinal de perigo perante a perda, incluindo o fracasso. Se para ele mostra a perda do objeto, para Lacan, a angústia mostra, não, a perda, mas a presença dela. Esta companhia, é um obstáculo ao aparecimento do significante, da falta, pois sem ela, o sujeito deixa de desejar.


O que é o gozo? Se refere a uma quantidade excessiva de energia psíquica no sistema. A angústia, perda e culpa inconsciente podem causar este problema, por consequência, sofrimento. No entanto, ele pode existir na ausência de todos eles. Ninguém escapa ao gozo, que pela experiência prática, posso afirmar que o sujeito não pode simplesmente se livrar da necessidade de sofrer. E, a fim de manter o seu equilíbrio psíquico, se impõe o mesmo. Neste fenômeno da necessidade de sua existência, descobrimos que ha um tipo onde não esta presente, no Masoquismo Moral, uma vez que não encontramos nele o sentimento inconsciente de culpa.


Como entendemos o sofrimento pela perspectiva humana?


As três grandes religiões monoteístas dão um lugar preponderante ao sofrimento humano. Teologicamente, dão ao pecado original um papel central ao ''Eu''. Este pecado é da origem ancestral, a culpa atribuída ao comportamento pecaminoso de Adão e Eva, naturalmente entendido como uma metáfora. O importante, é que este sofrimento, e sinalizado e apresentado como um sentimento de culpa que devemos carregar. Simultaneamente, oferecem um antídoto a vida transitória terrena, na oferta de uma vida eterna, em detrimento desse crime original, onde nosso arrependimento sincero, pode trazer a salvação do suposto martírio herdado. Ou seja, somos convocados a alcançar o perdão dos pecados, mesmo não sendo culpados, e devemos nos redimir por uma culpa da humanidade. Assim, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, fundados a partir de uma descendência comum, Abraão, seguem o caminho da teologia da salvação. Esses conceitos religiosos, oferecem a visão de um ser fadado a angústia, sem poder escapar desse arcabouço da vida sofrida.


Agora falemos de algo concreto que nos afeta muito de perto.


Por que repetidamente voltamos para esse lugar de dor?


Como que esse retorno ao sofrimento se estrutura em nosso inconsciente?


A própria dor escapa a qualquer quantificação, é uma experiência de cada um, e a alegria na dor permanece inconsciente perante a palavra. Cada pedaço do nosso corpo é nomeado por um significante, e o mesmo acontece com cada fração do corpo do outro. A disposição destes significantes é o que nos permite saber o que fazer quando estamos prontos para exercer o gozo. Freud, também precisou ser recorrente nesse tema para poder desvendar esse vínculo, somente após 32 anos de pesquisa esclareceu dito comportamento no seu livro, “Além do princípio do prazer”, onde define que esse evento, juntamente com o ''Princípio da realidade'', é a base do rumo dos acontecimentos psíquicos humanos. Essas duas formas de funcionamento mental, onde ''O princípio do prazer'' caracteriza-se pela procura de satisfação, e, em simultâneo, se estabelece como uma esquiva dela e da tensão que gera no sujeito. Sua sacada utópica ao respeito, estabelece que, por natureza, gostamos de sofrer, e embora pareça uma contradição, essa condição se edifica a partir do nosso nascimento. Exatamente, pelo fato de embora seja nossa mãe a progenitora, ''o Outro'' se estabelece, e chegamos ao mundo pela mão desse alguém, ou seja, um bebê na mão do outro. Os fenômenos clínicos que levaram Freud a formular o ''Além do princípio de prazer'', são os modos de raciocínio dos evolucionistas sobre a morte e a vida, onde toma por objeto às formas empíricas da repetição, concebendo-as como relações variáveis desse contexto prazeroso e da pulsão de morte. Uma premissa conectada a essa questão, é que erotizamos o sofrimento, é com ela a morte. Para poder avançar nessa compreensão precisamos falar do que em psicanálise chamamos de ''gozo'', que não se refere a um prazer, mas sim a um mal para o sujeito, exatamente por implicar em sua destruição. Na transgressão, o gozo consistiria no ultrapassar barreiras que fazem impedimento ao objeto, havendo a tentativa de encontrar a ''Coisa''.


Vejamos um exemplo. Na família, num relacionamento é até em certas amizades, onde encontramos um conflito que preza por um lugar sádico, por exercer a dominação, de poder, de submissão do outro, tipo: quem manda ou da às cartas aqui? O que evidencia, o desejo de quem será nesta posição dominante o “objeto do outro”. Assim, retornamos ao lugar anotado anteriormente do bebê, que por sua premência de sobrevivência deverá ser acolhido, amparado, amamentado, manejado, em decorrência, manipulado. Diante dessa remissão e acomodação necessária que todos atravessaremos, onde o outro vai nos moldar, dizer o que temos que fazer, como fazer, visão de mundo, quem somos, se desenvolve uma lógica de doação da subjetividade e submissão natural em relação ao outro. Embora tudo isso seja verdade, o amor, na sua essência, também será aprendido na infância, portanto, aprende-se sendo amado e, além disso, como se ama, e como queremos ser amados.


Então, por que repetimos esse lugar de sofrência?


A teoria da repetição, tanto para Freud como para Lacan, enquadra-se na busca do prazer no sentido de reviver algo que, no intuito de rememorar algo que pode ter sido desagradável para o nosso consciente, mais agradável para o inconsciente, encontram uma ligação recíproca. Tal fato, estabelece uma lógica, de que algo nos puxa para um sentimento inconsciente de retornar e incorporar um sentimento, em oposição à memória, um certo equilíbrio entre o prazer e o desprazer. Podemos trazer um exemplo clássico: circunstancias vividas, onde a construção da fantasia do amor nos relacionamentos, nos fazem procurar sempre por uma forma específica de indivíduo, sim, aquele mesmo que aflige dor e angustia, similar aos anteriores, é que nos farão sofrer novamente, repetidamente.


Sofremos, não simplesmente como uma forma de dor, sofrer de fato é muito mais. Como humanos, lutamos contra muitas formas de angústia e pensamentos complexos, lembranças desagradáveis e emoções indesejadas. Pensamos sobre isso, é temos muitos ressentimentos, por isso tememos. No entanto, somos dotados de um espírito corajoso e incríveis habilidades de seguir em frente. Superamos quase tudo, mesmo enfrentando nossas histórias mais intricadas. O que é mais incrível ao nosso respeito, é que mesmo sabendo que podemos nos machucar, amamos, inclusive, cientes que vamos morrer, oferecemos um lugar ao futuro. Ainda mais insensato, somos marcados pela ausência do saber da nossa existência é, a falta de sentido e propósito em muitas coisas da vida, mesmo assim, abraçamos ela.


Vamos ao poema, de novo com Drummond.


Amar

Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer, amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados, amar?


Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal,

senão rodar também, e amar?

amar o que o mar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?


Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o cru,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e

uma ave de rapina.


Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.


Amar a nossa falta mesma de amor,

e na secura nossa amar a água implícita,

e o beijo tácito, e a sede infinita.


Leitura do significado: Aqui Drummond apresenta o ser humano como um ser social, que existe em comunicação com o outro, a pesar do sofrimento que o atravessa, nesta composição defende que o nosso destino é amar, criar laços. Entende o amor como cíclico, “amar, desamar, e amar”. Sugere que mesmo diante da morte do sentimento e da dor, é preciso que acreditemos no renascimento do sentimento.


Por Dan Mena. Membro Supervisor do Conselho Nacional de Psicanálise desde 2018 - CNP 1199 Membro do Conselho Brasileiro de Psicanálise desde 2020 - CBP 2022130

 
 
 

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