O Estádio do Espelho e o Eu Ideal.
- Dan Mena Psicanálise
- 31 de mar. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 22 de set. de 2024
Durante o percurso da nossa existência, vamos nos distanciando da realidade, aquilo nos separa entre o que construímos e o que ambiguamente ''imaginamos ser'' é ''aquilo que de fato somos''. Essa projeção fantasiosa, “perfeitinha de mim” que estruturamos, não vem sozinha, senão segue, carregada de convicções...

Uma das contribuições mais brilhantes para a psicanálise dos últimos tempos: foi o “O ESTÁDIO DO ESPELHO E O EU IDEAL”. Com ela, Lacan expõe um acontecimento singular que tem lugar na criança entre os 6 e os 18 meses. Com efeito, o infante nesta fase passará por uma série de experiências, de natureza constituinte, quando será confrontada(o) com a sua imagem refletida no espelho. Uma enorme satisfação se aproxima dela(e), quando pela primeira vez se reconhece diante dele. Esse júbilo, corresponderia ao deleite e entusiasmo que experimentamos em algum ponto da nossa vida, ao fantasiarmos que somos seres ''completos''. O estádio do espelho, trata da função do ''Eu'', usando de maneira exemplar, a imagem do bebê diante do espelho, para exemplificar a relação primordial que temos com o nosso ''Eu''. O bebê, se reconhece no espelho num momento muito precoce, em que, ainda, não é capaz de se perceber como um ser inteiro, embora, a imagem que dele se reflita é exatamente a de um ser completo, inteiro e coordenado. Nesse encantamento da criança com sua imagem, visto como completude de si, agora cria uma identificação subjetiva, levando-a a acreditar que é de fato alguém completo, quando não é. Cria-se aqui, neste contexto, uma das grandes desarmonias do ser humano, entre, o que ''achamos que somos'' e aquilo ''que somos de verdade''. Essa divergência de leitura sobre o ''Eu'', como distorção primaria infantil, irá permanecer escrita em cada indivíduo, pelo resto da nossa vida.
O corpo, é um protagonista fundamental deste processo, ao ser nele que se resolve o grave problema da “fragmentação corporal” em que a criança está imersa, até conseguir uma imagem de totalidade. Estas apreciações, permitem uma explicação de certos sintomas recolhidos em quadros clínicos de histeria e paranoia, entre outros. Provavelmente, você já viu que o seu bebe não prestava muita atenção à sua imagem no espelho, até uma certa idade, exatamente, porque não sabia que era ele(a). A fase do espelho, designa e ativa um gatilho para a fase do desenvolvimento psicológico da criança, o que também indica, uma superação desta fase de não-reconhecimento. O ciclo do espelho, é um conceito que envolve o ''Ego'', onde ele se desenvolve como instância psíquica.
Este é um fenômeno universal, que pode ser verificado em todos os seres humanos, a criança reconhece-se ao espelho, antes de chegar a esta fase, reagem geralmente com medo ou curiosidade perante o espelho, ou simplesmente o ignoram. Quando uma criança se reconhece nele, celebra a aparência da imagem com um gesto de alegria. Este fascínio, é interpretado por Lacan como a identificação da criança com a sua imagem, que aí a encontra pela primeira vez, refletida na sua totalidade. Em vez de ver apenas partes do seu corpo, ele vê sua composição. O que antes eram apenas suas mãos, pernas, barriga, mas que nunca havia visto seu rosto, nem todo o seu corpo. A descoberta que ele(a) faz, nessa fase, é que estes fragmentos do corpo, que não pareciam estruturados ou relacionados entre si, não constituíam uma unidade, agora, com a experiência do espelho, formam um todo, o seu “Eu”. O que a criança olha e reconhece, o que o imita tão bem, e que mais cedo ou mais tarde descobrirá ser ele próprio, ou a sua imagem, para falar adequadamente, não é descoordenado, não tem um corpo fragmentado, daí o seu contentamento. Más tarde, Lacan observa, que a grande euforia ao experimentar a si própria(o) no espelho, é efêmera. Ele reconhece a si próprio(a) e não se conhece ao mesmo tempo, porque o que ele(a) discerne não é ele(a), mas apenas uma imagem de si. Uma reprodução separada, que não lhe pertence. É por isso, que a fase do espelho implica uma experiência de divisão e fragmentação do sujeito, uma dualidade que se produz traz o descobrimento de si.
Esta primeira identificação é profundamente alienante: para começar, a criança reconhece-se naquilo que sem dúvida não é ela própria, mas outra pessoa; em segundo lugar, esta outra, mesmo que fosse ela própria, é afetada pela simetria do espelho, uma condição que mais tarde será reproduzida em sonhos. De acordo com esta teoria, quando a fase do espelho ocorre, o bebê deixaria de estar tão angustiado com a ausência da mãe, e seria capaz de se contentar ao perceber-se refletido, e, sobretudo, dotado de unidade corporal, com um corpo próprio. O pai, também é importante nesta fase, é a função paterna que lhe permitirá manter a noção de unidade corporal do sujeito e depois o desenvolvimento psíquico que provém desta primeira percepção de unidade.
Entre às condições para que a fase do espelho tenha lugar, não mencionei a existência de espelhos. Logo, podemos imaginar que em locais onde os espelhos não são utilizados, às crianças de alguma forma também atingem esta fase do seu desenvolvimento, assim como os cegos, que o fazem sob outros mecanismos. Esta teoria psicanalítica, serve de apoio para a compreensão da estrutura do ''Ego'' e a identificação com os outros, não é um fato histórico pelo qual todo o ser humano tenha de passar. Em suma, a etapa do espelho, é a chave para a formação do Ego, é literalmente a origem fundadora da série de identificações que se seguirão, e continuará a constituir o ''Ego'' humano, com a companhia dos nossos pares.
Durante o percurso da nossa existência, vamos nos distanciando da realidade, aquilo nos separa entre o que construímos e o que ambiguamente ''imaginamos ser'' é ''aquilo que de fato somos''. Essa projeção fantasiosa, “perfeitinha de mim” que estruturamos, não vem sozinha, senão segue, carregada de convicções, crenças, convencimentos, é totalmente destituída de oposições e contradições. Tal personificação dessa imagem encantadora, cativante, sedutora e irresistível que construí sobre mim, não dá conta adequadamente de poder me responder profundamente “Quem sou eu?”, é como de fato não responde, preferimos não aprovar dita verdade.
Você já parou para se perguntar o porquê preferimos suportar, essa falsa imagem de si?
A resposta a esse enigma, pode ser encontrada no desconforto de termos que conviver com uma consciência ambígua, dividida, confusa, paradoxal, hesitante e contraditória. Somos, absolutamente, fascinados pela imagem encíclica e perfeita que erguemos de nós mesmos, por isso, distorcemos, deformamos a experiência subjetiva da nossa vida, moldando ela artificialmente, para não termos que renunciar e essa visão “perfeitinha de nós”.
Como sustentamos essa postura por tanto tempo?
Como grandes estrategistas que somos na manutenção das nossas falhas, hábitos é defeitos, na Psicanálise lhe damos o nome de “mecanismos de defesa”, são precisamente essas estratégias que utilizamos inconscientemente para tentar manter essa imagem perfeccionista de si, intacta. Quais são os mecanismos de defesa? Conhecidos e explicados pela psicanálise são: recalcamento, recalque ou repressão, negação, regressão, deslocamento, projeção, isolamento, sublimação, formação reativa e racionalização. Para Freud, são “processos inconscientes, realizados pelo Ego, que ocorrem independentemente da vontade do indivíduo.” Portanto, defesa é, na verdade, a operação pela qual o Ego exclui da nossa consciência os conteúdos indesejáveis, protegendo dessa forma o aparelho psíquico.
Ao final, então, cabe uma pergunta…
Quantas verdades conseguimos negar sobre si mesmos, ao custo de sustentar a nossa imagem perfeita?
Un poemita...
ESPELHO — Roseana Murray
Espelho, espelho meu:
diga a verdade,
quem sou eu?
Se às vezes me estilhaço,
se às vezes viro mil,
se quero mudar o mundo,
se quero mudar o rosto,
se tenho sempre na boca
um gosto de água e de céu.
se às vezes sou tão-só
quando me viro do avesso,
se às vezes anoiteço
em plena luz do sol
ou então amanheço
com vontade de voar,
espelho, espelho meu:
diga a verdade,
quem sou eu?
Entendendo o poema: Perceba que o primeiro verso do poema dialoga com outro texto, o Conto de Branca de Neve. Começa com uma dúvida, que está expressa em uma pergunta: Quem sou eu?, onde usa o sentido figurado da linguagem; “Se às vezes me estilhaço… Se às vezes viro mil.” Usa a hipérbole que consiste no exagero de uma expressão, para causar um efeito expressivo, “Quando me viro no avesso.” Expõe ideias opostas, para expressar seu estado de desorientação, “Se às vezes anoiteço — Em plena luz do sol.” O tema, possui um claro clamor da autora, em tentar descobrir quem é o ''Eu'' lírico da sua personalidade.
Até a próxima…
Por Dan Mena. Membro Supervisor do Conselho Nacional de Psicanálise desde 2018 - CNP 1199 Membro do Conselho Brasileiro de Psicanálise desde 2020 - CBP 2022130
Commentaires