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O Estranho ou Infamiliar.

Atualizado: 22 de set. de 2024



"Há uma beleza no estranho, que desafia a compreensão e cativa a imaginação." Allan Poe.

Por Dan Mena.

O que nos assusta, é ao mesmo tempo, nos mantém acordados à noite após assistirmos a um filme de terror? 


Se analisarmos uma lista de personagens típicos desse tema, podemos chegar a uma resposta fácil e óbvia a esta pergunta, temos medo de coisas e pessoas que não compreendemos.


O conceito de estranho, também conhecido como "Unheimlich" em alemão, ocupa um lugar central na teoria psicanalítica. Foi Freud quem introduziu este termo no seu famoso ensaio, "O Estranho" de (1919), onde se aventurou nos recantos obscuros da mente humana. O ''sinistro'' ou ''não familiar'', se configura quando o familiar se torna excêntrico, extraordinário e incomum. Não é tanto a novidade que pode causa horror, mas a transformação de algo que considerávamos singular e incomum e vice-versa. Essa passagem de um para o outro, séria o que dá origem à angústia. O sinistro nesse lugar seria sempre o que encontramos, por assim dizer, desorientado, perdido, e quanto mais norteado estiver numa pessoa, menos seus acontecimentos lhe darão dita impressão. O impacto que causa no ser humano está relacionado com o conflito entre o conhecido e o desconhecido, entre o consciente e o inconsciente. Neste artigo, vou mergulhar nesse abismo do não familiar, analisando o seu significado e relevância no campo da vida sob a visão da psicanálise. Boa leitura.


O conceito de “estranho” diz respeito àquilo que é desconhecido, insólito ou perturbador para o sujeito. Desperta um sentimento de estranheza ou perplexidade na pessoa, que se pode manifestar tanto internamente quanto externamente, em pensamentos, emoções, afetos, como; objetos e situações. Da forma como influência o ser humano é uma questão complexa, ligada a processos psíquicos inconscientes. Algumas das formas em que isso pode se manifestar são:


Angústia: O estranho pode desencadear angústia, principalmente quando se apresenta como algo desconhecido ou ameaçador para o sujeito, surge como uma resposta ao inesperado ou ao imprevisível.


Reconhecimento: Pode ativar processos de reconhecimento ou de identificação, por exemplo; gerar a necessidade de procurar referências conhecidas ou situações vinculadas para tentar dar sentido a situação que se apresenta.


Sintomas: Leva à formação de sintomas, que podem surgir como mecanismos de defesa face ao perturbador, e funcionar como expressões simbólicas a conflitos internos.


Relações: As relações do sujeito com os objetos, pessoas, coisas e situações, são fundamentais para o seu desenvolvimento psíquico e podem afetar este, gerando atração ou rejeição por eles.


Desenvolvimento: A experiência com o estranho pode fazer parte do processo de desenvolvimento do sujeito. Na infância, os objetos ocultos podem ser uma fonte de curiosidade, contribuindo para a aprendizagem e construção da identidade.


A origem do estranho.


A palavra “Unheimlich” em alemão, se traduz como “o sinistro” ou “o estranho”, mas a sua tradução literal é “o não familiar”. Freud escolheu este termo precisamente por não ser algo completamente novo, mas sim, o que se torna inquietante devido à sua familiaridade e proximidade com o que é já conhecido. É de fato o retorno do reprimido, aquilo que emerge das profundezas do inconsciente e se manifesta ambivalente, gerando sentimentos de medo e atração ao mesmo tempo. É aquilo que perturba, que nos confronta no que supostamente sabemos, quebrando as barreiras entre o real e o imaginário como uma experiência psíquica, onde o familiar e o desconhecido se entrelaçam.


O estranho e o inconsciente.


O seu conceito caminha íntimo à noção de inconsciente, portanto, provém dele, essa região da mente que alberga os nossos desejos, impulsos e memórias reprimidas. Quando o recalcado vem à superfície, se manifesta de formas estranhas, desafiando a nossa compreensão racional. O jogo dialético é que se concentra no mesmo objeto familiar e inusitado ao mesmo tempo, escondido e não, onde se torna extraordinariamente complicado. O paradoxo consiste no fato que a fonte do pavor não seja estranha na sua oposição imediata ao familiar, mas na questão de que antes de emergir sob um aspecto ameaçador e perigoso, se remete para o usual, embora esteja na sombra. “Tudo o que deveria permanecer invisível, mas que se manifesta”, diz Schelling. A citação é um convite a explorar funduras da mente, ao reconhecer que há aspectos de nós próprios que podem estar dissimulados, mas que se manifestam na nossa experiência quotidiana. Ao trazer à luz o que permanece secreto, podemos obter uma imagem mais completa da nossa psique e trabalhar no sentido de uma maior autenticidade. Esta expressão reúne o ato de esquecer e o de recordar, visto que no objeto está simultaneamente presente e ausente. Aparece sempre que se perde a distância a que o objeto é normalmente mantido, porque o espaço existente perdeu sua dimensão habitual. No quotidiano, terão coexistido momentos em que parecia que o sinistro se afastava de nós, mas cada vez que reaparece, anuncia uma progressiva alienação dos sujeitos que tentam manter a sua percepção fiel ao que outrora nos era trivial. Assim, nesta alternância, se insinuam dinâmicas imbricadas da memória. No meio deste buraco negro de desinformação, imerso no inominável, na ameaça da sombra que se materializa diariamente, sem mostrar a cara, o exterior começa a se confundir com o interior e a atividade perceptiva. Acontece assim, cada vez mais modelada pela experiência do espelho, na ausência de outro que responda, que não se oculte. É a projeção dos sujeitos que tentam se reconstruir na sua realidade, mas, com mais uma volta da espiral apavorante, que projetado, regressa ao seu lugar de origem, e aos conteúdos do fantasmagórico.


O conto de fadas e o extraordinário.


Freud recorreu à análise dos contos de fadas e dos mitos para explorar o conceito. No seu ensaio “O Sinistro”, analisou o conto de fadas, “A Mão Cortada” dos Irmãos Grimm. Neste conto, a mão decepada de um homem morto volta a assombrar o protagonista e argumenta que dita representa algo simbólico ligado à castração, um medo, e, ao mesmo tempo, um desejo reprimido na psique masculina. Analisou também o mito de Édipo e o seu complexo, em que um filho deseja inconscientemente matar o pai e casar com a mãe. Mitos e contos de fadas revelam como o estranho se entrelaça com os nossos desejos mais reprimidos, criando uma amálgama entrelaçada de emoções complexas.


Em “O homem da areia”, (“Der Sandmann”), o famoso conto de Hoffmann escrito em 1816, aborda o tema do estranho e do medo do desconhecido. O conto é frequentemente citado por Freud no seu ensaio; “Das Unheimliche” como um exemplo clássico do conceito psicanalítico do “infamiliar”, (Unheimlich). A história segue o protagonista, Natanael, um jovem estudante atormentado por pesadelos e medos relacionados com um homem misterioso chamado Coppelius, como numa viagem aos abismos da psique.


A história começa com a infância de Natanael, o protagonista, atormentado por uma figura sinistra chamada “Sandman”, sua mãe e a sua cuidadora lhe contam histórias aterradoras sobre este ser que vem buscar crianças desobedientes. Esse medo persiste em Natanael até a idade adulta, quando ele se muda para a cidade grande para estudar. Na sua nova cidade, Natanael conhece o misterioso Coppelius, um comerciante de óculos, e associa imediatamente este homem sombrio ao ''Sandman'' da sua infância. Natanael desenvolve uma fixação por Coppelius e acredita que ele está envolvido em sinistras práticas alquímicas e mecânicas quando também se apaixona por Clara, uma jovem de personalidade gentil e afável. A sua obsessão por Coppelius cresce e ele começa a acreditar que ela está de alguma forma ligada a este estranho homem, que representa uma ameaça à sua relação. No entanto, o leitor depressa descobre que é na realidade um autômato criado por Coppelius. À medida que a história avança, a linha entre realidade e fantasia se tornam cada vez mais tênues para Natanael. Ele mergulha num estado de paranoia e medo, em que sua mente é dominada por visões e delírios. Como leitores, embarcamos nesta viagem angustiante pelos abismos da psique humana, sem uma distinção clara entre o real e o imaginário.


A narrativa culmina num confronto trágico entre Natanael, Coppelius e Olímpia, com resultados devastadores para todos os personagens envolvidos. É uma história rica em simbolismos e significados psicológicos. Explora temas como a dualidade da mente humana, a luta entre a razão e a loucura, o desejo e a obsessão, e os terrores ocultos que podem residir no nosso subconsciente. Através desta obra-prima, Hoffmann criou uma atmosfera de suspense e horror psicológico, que continua a intrigar e perturbar os leitores até os tempos atuais. Não é apenas um conto gótico memorável, é uma narrativa complexa, entranhada, que explora os temas do medo, loucura e ambiguidade.


O Duplo.


Outro aspecto interessante do conceito de estranho é a figura do “duplo”, em que uma pessoa é confrontada com uma versão de si própria que é subversiva e ameaçadora. Conhecido como o “Doppelgänger”, tem sido um tema recorrente na literatura e na arte, se referindo a uma réplica de uma pessoa. A ideia de ter um duplo que se assemelha a nós, mas, ao mesmo tempo, é estranho e distorcido, se relaciona com a luta entre o ego e o inconsciente, onde os desejos reprimidos e os conflitos interiores emergem na consciência. Trata-se sobretudo de alucinações visuais, onde o sujeito transfere suas próprias ilusões cinestésicas para o seu duplo. Esta experiência, que provoca horror, está relacionada com o sentimento de mal-estar e estranheza que pode surgir quando uma pessoa é confrontada com uma figura que se parece com ela. Como figura duplicada, pode representar uma projeção dos medos e ansiedades interiores do indivíduo, ou pode simbolizar a presença de uma força sobrenatural. Na literatura, o tema foi explorado por vários escritores, como Edgar Allan Poe. Está também presente na obra de Dostoiévski, em “O Jogador”, onde o protagonista confronta o seu duplo num jogo de cartas que representa o seu vício no jogo e a forja da sua autodestruição. Também pode ser encontrada em filmes de terror, onde as personagens enfrentam seus piores medos e traumas pessoais.


Repressão.


Freud argumentou que a estranheza surge quando algo que foi reprimido no inconsciente penetra na consciência. A repressão é um mecanismo de defesa psicológica que impede que certos desejos ou impulsos cheguem à consciência e, em vez disso, permaneçam escondidos no inconsciente. No entanto, por vezes, estes conteúdos reprimidos podem se manifestar indiretamente através do estranho, desafiando a barreira que separa o consciente do inconsciente. Quando ocorre a repressão, o material reprimido torna-se anormal, sendo vivido como alheio a si próprio. O sujeito pode sentir que esses pensamentos não provêm do seu próprio eu consciente, mas parecem vir de uma fonte externa. Esta sensação de estranheza pode incluir pesadelos, sonhos estranhos, fantasias ou na percepção de objetos e situações do quotidiano que assumem um tom inquietante.


A Fantasia.


A ligação entre o estranho e a fantasia é uma atividade mental poderosa com origem no inconsciente e se manifesta nos nossos pensamentos e sonhos. Está intrinsecamente ligada às nossas imaginações, que podem surgir na forma de fuga à realidade ou para dar sentido a experiências traumáticas. Fornecem pistas para desvendar aspectos dos desejos inconscientes, uma forma de enfrentar e lidar com conflitos interiores, criando cenários imaginários, onde o sujeito pode sentir que tem algum controle sobre situações que, de outra forma, poderiam ser esmagadoras e incompreensíveis. No entanto, podem conduzir a uma maior alienação e confusão quando a fantasia se torna dissociada da realidade.


Arte e literatura.


No mundo da arte e da literatura, a fantasia é representada e utilizada como um recurso criativo, desde os surrealistas aos contos de terror e às pinturas enigmáticas, terreno fértil para a sua expressão. Artistas e escritores a utilizaram e usam como ferramenta para explorar o desconhecido e questionar às normas sociais e culturais estabelecidas. Da literatura ao cinema, as artes visuais, os artistas usam o estranho como um expediente para provocar emoções, despertar a imaginação e explorar os limites do conhecido. Escritores como Franz Kafka e Edgar Allan Poe, criaram obras que evocam sua utilização. Suas histórias apresentam frequentemente mundos grotescos e absurdos, onde o familiar se transforma no incógnito. No cinema, diretores como David Lynch e Stanley Kubrick utilizaram a estética do seu papel para criar filmes que desafiam a lógica e o senso comum. Filmes como “Mulholland Drive” e “2001 Uma Odisseia no Espaço”, apresentam narrativas enigmáticas e cenas desconcertantes que geram uma sensação de estranheza no público Nas artes visuais, artistas como Salvador Dalí e René Magritte, exploraram o surrealismo e a metafísica para representar mundos oníricos e fantásticos que desafiam a realidade e jogam com a percepção. Já na literatura gótica, o estranho aparece através da presença de elementos sobrenaturais, fantasmas e criaturas monstruosas que criam uma atmosfera de mistério e terror. Nos seus trabalhos, Edgar Allan Poe, explora temas como a loucura, a morte e o medo do desconhecido. No realismo mágico, temos a mistura do quotidiano com o fantástico, criando uma atmosfera irreal, onde o escritor Gabriel García Márquez é um dos expoentes mais proeminentes deste gênero, com obras como “Cem Anos de Solidão”, que fundem o real e o mágico magistralmente.


O mundo social e político.


O conceito de estúrdio pode também ser aplicado ao domínio social e político. Em sociedades cada vez mais diversificadas e globalizadas, os indivíduos podem ser confrontados com o estranho sob a forma de cultura, valores e crenças diferentes das suas. Esta experiência, que pode gerar medo, rejeição ou xenofobia, é uma oportunidade para a compreensão e abertura ao incógnito. Na esfera política, se manifesta com o aparecimento de líderes carismáticos e movimentos populistas que prometem soluções simples e rápidas para problemas sociais complexos. Estes líderes e suas ideologias, podem ser vistos como ameaçadores, mas também podem atrair seguidores que procuram respostas para um mundo cada vez mais abstruso. Como uma noção psíquica multifacetada, tem sido explorada a partir de diversas perspectivas nos domínios da psicanálise, da arte, da cultura e da sociedade, representando uma intersecção entre o familiar e o não familiar, o conhecido e o inquietante. A sua presença evoca diversas emoções e reações no indivíduo, oferece uma janela de oportunidades para a exploração e compreensão de aspectos reprimidos da mente. Desde Freud, até aos psicanalistas contemporâneos, continua a ser um tema de interesse e profunda reflexão.


Clínica psicanalítica.


Psicanalistas somos frequentemente confrontados com pacientes cujas histórias e sonhos estão repletos de elementos estranhos. Neste ponto, trabalhamos com esse conjunto no processo terapêutico, como forma de interpretação dos conteúdos inconscientes, ajudando nossos clientes a enfrentar e compreender seus desejos e conflitos.


“O termo [Unheimlich] se refere, antes de tudo, ao que deveria ter permanecido secreto, mas se tornou manifesto”. Freud sublinha, que o não familiar está relacionado com algo que estava escondido, mas que se torna evidente e visível, conectado a conteúdos reprimidos do inconsciente que emergem para a consciência perturbadoramente, evocando sentimentos de ansiedade. A este respeito, gostaria de acrescentar uma observação que me parece decisiva para a questão do caráter daquilo a que se nomeou “Unheimlich”. Não é o medo do desconhecido ou do que é novo para nós, mas, daquilo que é já familiar ao sujeito O ''não familiar'' não está relacionado com o medo do desconhecido, mas com o medo do conhecido em si, que toma o seu lugar.


“O Inquietante, é esse tipo de coisa que nos leva de volta ao conhecido, há muito esquecido e agora estranho.”

Freud, em “O estranho” (1919).


“A palavra ''Heimlich'' [familiar] é contrastada com seu oposto, ''Unheimlich'' [não familiar]; assim, ele não significa somente aquilo que é familiar, mas também aquilo que é desconhecido e secreto.” Freud, (1919). Ressalta a natureza ambivalente do infamiliar, que pode envolver tanto elementos familiares como desconhecidos.


O fascinante e enigmático mundo do estranho na psicanálise, desde a sua origem no inconsciente até à sua manifestação na fantasia e na arte, representa os aspectos mais obscuros da mente humana. Mediante seu estudo, podemos mergulhar nos recessos da psique e descobrir os mistérios que se encontram sob a superfície da consciência. A clínica psicanalítica é apresentada como um desafio e uma oportunidade para compreender e curar as feridas psíquicas do passado, que convidam a explorar nossa própria complexidade, abraçando a ambivalência que caracteriza a espécie a sua própria existência.


O estranho segundo Lacan.


No vasto campo da psicanálise, para Lacan, o estranho não se limita simplesmente ao insólito, mas remete a um conceito mais profundo que envolve a relação entre o sujeito e o seu inconsciente. Está intrinsecamente ligado a ele e às suas manifestações no domínio dos pensamentos, desejos e memórias reprimidas que influenciam nossos pensamentos e comportamentos, sem que tenhamos consciência disso. O estranho, surge quando estes conteúdos irrompem na consciência e se manifestam mediante atos falhos, sonhos, sintomas neuróticos e fantasias. Lacan defende, que o estranho é uma indicação da presença ativa do inconsciente na vida psíquica do sujeito e da sua capacidade de influenciar suas ações. No “Outro”, caracteriza a figura externa que influencia a formação da identidade, dita surge, enquanto o sujeito encontra no “Outro” um enigma ou algo que não consegue compreender totalmente.


O gozo.


Lacan diferencia a relação de gozo com prazer, onde o primeiro se refere à satisfação de desejos conscientes e o segundo à busca insaciável de satisfação que vem do inconsciente. O estranho surge quando o sujeito é confrontado com a experiência do gozo na sua forma mais perturbadora, ou seja, quando este se torna um caos da vida psíquica. Esta experiência de gozo desenfreado e descontrolado pode se manifestar via sintomas neuróticos, adições e comportamentos compulsivos.


A experiência do real e da cultura.


A estranheza está também ligada ao conceito do ''Real'', aquilo que escapa à simbolização e à representação, que é ininteligível e indescritível na experiência humana. Podem ser experienciados quando o sujeito é confrontado com algo que não pode ser totalmente assimilado ou articulado mediante palavras e conceitos simbólicos. Esta experiência, pode ser desconcertante e angustiante, mas é importante para os limites da compreensão abrirem novas fronteiras de conhecimento. Desde sua ligação ao inconsciente, e até à sua relação com o “Outro”, o gozo, desafia ao questionar nossas certezas, abrindo pasagem para o desconhecido que nos habita e enriquece nossa compreensão da subjetividade enigmática. Pode ser aplicado à análise da cultura e da sociedade, que está cheia de elementos estranhos, desafiando às normas sociais estabelecidas. Estes elementos podem se manifestar em mitos, rituais, obras de arte e práticas desviadas do familiar, provocando um impacto na psique individual e coletiva, gerando tanto fascínio quanto medo.


Citações;


“O que Freud chamou de ''Unheimlich'', o infamiliar, é aquilo que deveria ter permanecido secreto, mas tornou-se manifesto.” Lacan, em “O Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise” (1969 – 1970). Lacan recorre à ideia de “infamiliar” de Freud, sublinhando que se trata de algo que estava reprimido, mas que agora se tornou manifesto.


“A experiência analítica permite que a dimensão do infamiliar seja explorada, revelando os aspectos ocultos e reprimidos do sujeito.” em O Seminário, Livro 20: (1972 – 1973). A análise é um processo que pode revisitar o não familiar.


“O infamiliar é aquilo que escapa à nossa compreensão consciente, mas que influencia inconscientemente os nossos pensamentos e ações''. “O Seminário, Livro 2: ''O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise”, (1954 – 1955). Nesta citação, Lacan sublinha que algo está para além da nossa compreensão consciente, mas tem um impacto poderoso no nosso psiquismo.


“O infamiliar é uma parte fundamental do inconsciente, constituído por desejos reprimidos, fantasias e memórias que afetam nosso comportamento sem o nosso conhecimento consciente”. Em “O Seminário, Livro 11: ''Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, (1964). O inconsciente é composto por conteúdos reprimidos que exercem uma influência significativa nas nossas vidas. Estes desejos e fantasias ocultos podem manifestar-se de formas desconhecidas para nós, afetando as nossas escolhas.


Na obra de Lacan, alusões ao tema podem ser mais sutis e abertas a diferentes interpretações, uma vez que a sua abordagem é mais estrutural e simbólica do que a de Freud. Lacan se centra em questões de linguagem, na estrutura do inconsciente e na subjetividade, o que pode levar a uma compreensão mais abstrata e ampla do que constitui o estranho.


Durante o processo de análise, os pacientes podem sentir emoções e pensamentos perturbadores, aquilo a que Freud chamou de “resistências”. Estas, podem advir como uma sensação de mal-estar, à medida que confrontadas com aspectos de si próprio e da história pessoal. Como analistas, encontramos na estranheza, na transferência e contratransferência, emoções inesperadas. O terapeuta deve estar aberto a explorar estes aspectos para melhor compreender a dinâmica psíquica do mundo inconsciente, um território escuro onde se encontram desejos e medos profundos, experiências sobre a realidade e os seus confrontos. Através da análise dos mitos, dos contos de fadas e da figura do duplo, Freud forneceu ferramentas fundamentais para explorar os abismos da mente e compreender complexos entrelaçamentos que moldam o complexo mundo inconsciente. A natureza da subjetividade, desde sua ligação ao inconsciente e ao “Outro”, sua presença na cultura, na arte e na psicopatologia, convida a questionar nossas certezas e viajar para o desconhecido, em última análise, “o não familiar” é trabalhar com novas formas de conhecimento.


O infamiliar pode se tornar extraordinariamente difícil de suportar, sobretudo, quando se trata de estruturas frágeis, com poucos recursos simbólicos para processar a angústia que lhe acompanha. Se alguma coisa caracteriza o tempo em que vivemos, é o clima de pesadelo do qual é difícil acordar e parar. A realidade se insinua quando ligamos o rádio, sintonizamos notícias, lemos o jornal ou nos ligamos às redes sociais.


Ao poema;


O Estranho

Dan Mena.

Inspirado no conceito “Unheimlich” de Freud.


Num recanto sombrio e secreto,

Moram sonhos que me habitam,

Lugar do inconsciente disfarçado,

O incompreensível sempre vêm camuflado.


Uma sombra que me espreita na penumbra,

Como um duplo sinistro se deslumbra,

O reflexo do oculto e reprimido,

Na minha mente se esconde esvaído,

algo que provavelmente não foi esclarecido.


Um rosto familiar confiro no espelho,

Não reconheço, mais me enche de desejo,

Será por acaso minha imagem refletida,

Ou um estranho ambíguo enxerido?


Nos meus sonhos, o inquietante manifesta,

E o medo que se apresenta,

Um déjà vu confuso e ardiloso,

Fenômeno intrigante e melindroso.


O inquietante aparece em cada esquina,

Invade minha alma como sombra esquiva,

Despertando lembranças esquecidas,

De emoções ficcionais nunca sentidas.


Uma jornada ao coração do reprimido,

Ao obscuro, oculto e incompreendido,

Uma dança de fantasmas esquecidos,

Que se fazem presente no significativo.


''Infamiliar'' estranho e inquietante,

Um encontro profundo, penetrante,

Onde o eu e o outro se embaralham,

Num abraço imaginário conhecido.


O sujeito bizarro se mistura,

instruindo realidades subjetivas,

Dédalo labiríntico do ser que o amplifica,

Na razão, loucura, desejo e obsessão,

Afinal, é mesmo um terror.


Até breve, Dan Mena. Membro Supervisor do Conselho Nacional de Psicanálise desde 2018 - CNP 1199 Membro do Conselho Brasileiro de Psicanálise desde 2020 - CBP 2022130

 
 
 

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