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A Palavra.

Atualizado: 22 de set. de 2024



“Existem momentos na vida da gente, em que as palavras perdem o sentido ou parecem inúteis e, por mais que a gente pense numa forma de empregá-las, elas parecem não servir. Então a gente não diz, apenas sente.” Freud.

Por Dan Mena.

É porque atribuímos tanto valor à palavra?


A palavra, como dom humano, tem a virtude de dar conta do que somos, da nossa história, do que acontece conosco. Porque não há sofrimento que não esteja na raiz dos conflitos que padecemos, experiencias, quê nos desconfortos e contradições, nos compõem. No início era o verbo, talvez o seja também no final… ''no início era o verbo'', a palavra vinda e inscrita no corpo para lhe dar forma, para moldar um significado que nos permitisse estar inseridos na cultura e no social. Estas palavras do “Outro”, darão sentido às nossas construções de vida, permitindo uma interpretação da realidade subjetiva. A grande contribuição da psicanálise, é sua inegável capacidade de corrigir os sintomas pela fala, por meio da investigação do inconsciente é nosso método da associação livre, tema que se cruza inevitavelmente neste artigo. Boa leitura.


“A civilização começou no primeiro momento em que um homem irritado atirou uma palavra em vez de uma pedra”. Freud


A “Psique” é uma palavra grega, que em alemão a traduzimos para o português por ''Alma'', seria por esta a compreensão que a psicanálise confere a sua clínica, “O tratamento da alma”, definido como técnica, sistema ou processo de intervenção para os fenômenos patológicos da vida anímica. Mas não é esse o significado absoluto da expressão. Por “tratamento psíquico” concebemos antes; o tratamento ''a'' partir da alma, sejam nos conflitos ou desordens psíquicas e corporais, com a implementação de recursos que influenciam e compõem primitivamente a alma humana.


''Um desses recursos é sobretudo a palavra, e a palavra é de fato o instrumento essencial do tratamento da alma".


Tratamento Psíquico — Tratamento da Alma — Freud (1890).


A psicanálise é uma prática da fala, que se baseia na escuta, não na observação, nem no olhar ou movimentos corporais. A linguística singular e específica que utilizamos os seres humanos se interlaçam e transmitem via signos linguísticos. Esta experiência inata da nossa espécie é representada na linguagem. Como sujeitos, estamos condicionados aos outros, ao inconsciente, à nossa forma de expressão pela linguagem, assim somos, de fato, sujeitos sociais.


Portanto, precisamos comunicar, falar e ser falados, inscrever-nos, assinar para aparecer no discurso do outro. O inconsciente está estruturado como uma linguagem, que quando o consciente está distraído, o inconsciente tira seu partido dela, não só na sua função comunicativa, mas também avisando o Ego de que ainda lá está, devidamente presente. Lacan afirma, que o traquejo analítico confirma que tudo passa através da palavra, e o inconsciente é estruturado como uma linguagem, dando grande valor e poder a elas. A particularidade da transmissão da dialética materna e as diferentes pessoas que ocuparam o ''Outro'', imprimem marcas singulares e absolutamente particulares no sujeito, digitais, que marcarão o seu desejo, quereres, resultados e consequências.


São as balizas do inconsciente que relatam o nosso destino, disse Jung;


“Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo de destino”. Podemos sinalizar com várias razões para esse pensamento, mas a principal se consolida na ideia de que em determinados níveis da nossa consciência, a vida posta numa metáfora, pode parecer um trem desgovernado e fora de controle.


A palavra precede o assunto, o ato, existe antes de sermos indivíduos. Nascemos num mundo feito delas. Esta forma de pensar sobre o sujeito tem suas consequências Não é o mesmo imaginar que surgimos como algo exclusivamente biológico, que com o tempo adquirimos a linguagem como produto da maturação, desenvolvimento e aprendizagem. Os efeitos desta estrutura que, assim pensada, marcará inevitavelmente o biológico, nos separando para sempre do natural. A palavra não pertence ao indivíduo, é como seres que em grande medida dependemos dela, é daquela singularmente, a que vai além do que é conhecido. Ao falar sobre o que nos acontece, podemos reconstruir às raízes do nosso mal-estar civilizatório contemporâneo, onde conseguimos percorrer o caminho de volta para casa, seguindo os traços dessas palavras que nos guiam, como rastros perdidos, deixados para trás como migalhas, que descuidadamente deixamos no caminho. Falar, nos remete a uma encruzilhada onde fomos detidos, congelados no tempo, que não são senão aqueles onde o desejo foi colocado para baixo do tapete. É falando para si, expondo em palavras, que desfazemos a cumplicidade com o desconforto que carregamos. É através dele, que criamos a possibilidade de encontrar a trilha que nos leva ao lugar onde algo foi enclausurado, estagnado, impedidos de conceber a possibilidade de uma nova escolha, uma reconstrução do destino possível.


Há palavras que são ejetadas, vomitadas, e outras apenas murmuradas. Não dizem nada, apesar do seu empenho, no entanto, outras vêm diretamente do coração, têm a qualidade de parar o tempo e nos colocar em suspensão na sua própria indagação. Nesse momento, ela se faz presente, criando o testemunho da sua presença. A regra básica da psicanálise radica no princípio de que a palavra é a única forma do indivíduo encontrar sua verdade. Outrossim, o diálogo e a pergunta, são às ferramentas à disposição do analista. No dizer ambíguo, simultâneo, escondido, o que importa é o que não é dito; não se trata de adivinhar o que alguém não diz, mas de situar o que não é dito no que se diz. Isto é a ''escuta'', no seu sentido mais puro. Um espaço privilegiado para o seu estudo como protagonista. Trabalhamos com a palavra, a do discurso, no seu sentido natural, nada ''é'' sem seu comparecimento, elas que criam os sentimentos, o sujeito, acontecimentos de vida, o corpo, incluindo nossas desordens.


Então… qual é a da palavra?


Compreendemos que a mesma merece uma reflexão mais aprofundada, tem mais do que uma dimensão e missão. Ao incluir o inconsciente, a psicanálise encontra na palavra seu dizer para além do que se diz, o que se profere no silêncio que, da perspectiva da psicanálise está incluso. A hipótese do inconsciente, considerada em todas suas implicações, introduz outra teoria a partir da qual se pode pensar nela. Contudo, o lugar a partir do qual o inconsciente ainda é considerado, implica que existe o homem e, dentro dele, os seus compartimentos possíveis do inconsciente, o Ego, a consciência e os habitantes dessas interiorizações, como os impulsos, desejos, anseios, representações das coisas, e assim por diante. Através das narrativas, podemos encontrar o nosso caminho de regresso a casa, descobrindo que aquilo que sofremos, não é mais senão o que escolhemos, sem o sabermos. E é a partir daí, podemos facilmente assumir a responsabilidade pelo desconforto particular, que talvez possa nascer de uma ação mais precisa, que ponha fim a um sofrimento ilimitado, utopicamente, por vezes desejado. Para o médico, o corpo é o organismo que pode ser visto fisicamente, para a psicanálise o corpo é o libidinal, o pulsional, às palavras, o que fala e goza, para além do prazer, também, através dos seus sintomas. A voz e o olhar são conjuntamente o corpo, mesmo que se expressem para além da pele, como uma fronteira.


Que papel operam às palavras nessa espontaneidade associativa do cliente?


Produzir a inventividade, promover às ondas do imaginário, envolvendo uma comoção do próprio conhecimento, onde moram a censura imposta, a verdade inconsciente por nós suportada. Seria, portanto, a chave da interpretação analítica, que tem em sua estrutura encontrar o ''ato falho'' (os atos falhos diferem do erro comum, ao possuírem significado e resultam da formação de um compromisso entre o Inconsciente e o Consciente. São manifestações do que foi reprimido da Consciência e que, deste modo, como um “engano”, podem aparecer, revelando a intenção Inconsciente, e serem satisfeitos). Propiciar o fracasso proposital do significado preexistente no indivíduo, daquilo dado como conhecido; gerando uma pequena reviravolta interior, operada a partir de um significante organizador do sujeito, seja de um mito, crença, hábito, do aspecto familiar, social, emocional ou pessoal, capaz de abalar e converter uma convicção infantil forjada ao longo de muitos anos.


Cura ou releitura?


Embora como psicanalistas não gostamos falar em ''cura'' (de forma que não consideramos às pessoas como doentes), analiticamente se apresenta uma notável diferença de desigualdade, onde o analista não julga, para a verdade poder manifestar-se. Por esta via linguística, o sujeito pode encontrar a sua própria verdade, um saber genuíno que revela sua perversão, ressentimentos, traumas, frustrações, uma autenticidade que transparece e expõe para si sua obscenidade oculta. Através da linguagem, o princípio da lisura pode ser exclamado, embora sabemos, que irá permanecer um certo resquício da impossível “verdade”, que nunca será absolutamente conhecida, inclusive para quem a cogita enunciar. A psicanálise se perfaz a partir deste ponto, ''do que é dito e não dito'' pelo sujeito, daquilo que tem efeito e causa de integridade para ele(a). Assim a linguagem se entranha no indivíduo que seleciona seu dizer, escolhe as palavras que o atravessam e constituem. Quando concedido o poder real do inconsciente, na terapêutica analítica e pela sua interpretação, que o sujeito-cliente, neste caso analisado, poderá ingressar no novo mundo que pretenda transformar, algo, ou simplesmente tudo que achar conveniente de si ser o novo.


Assim, gostaria de terminar com este poema;


Já não quero dicionários


consultados em vão.


Quero só a palavra


que nunca estará neles


nem se pode inventar.


Que resumiria o mundo


e o substituiria.


Mais sol do que o sol,


dentro da qual vivêssemos


todos em comunhão,


mudos,


saboreando-a.


A Palavra, 'A Paixão Medida'.


Carlos Drummond de Andrade


Até a próxima; Obrigado.


Por Dan Mena. Membro Supervisor do Conselho Nacional de Psicanálise desde 2018 - CNP 1199 Membro do Conselho Brasileiro de Psicanálise desde 2020 - CBP 2022130

 
 
 

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