A Interpretação.
- Dan Mena Psicanálise
- 5 de jul. de 2023
- 10 min de leitura
Atualizado: 22 de set. de 2024
“O maior desejo do nosso inconsciente é o de ser ouvido” Dan Mena.

A função é a ação ou serviço próprio particular que se espera de alguém, e o trabalho que esse indivíduo deve fazer ou que se espera que faça, para a sua tarefa ser cumprida. Neste caso que abordarei, é o psicanalista, o seu perfazer. Para além de ser também uma atribuição social, o próprio Freud define esta tarefa como um método de investigação, uma fonte de conhecimento psicológico. A psicanálise como método, começou há mais de um século, onde se identifica no campo da clínica psíquica como uma abordagem terapêutica, e continua sobretudo, hoje em dia, sob esta concepção original na minha opinião. Se levanta aqui uma questão importante para o conjunto de técnicas que utilizamos que vêm ao encontro do tema agora apresentado. Boa leitura.
Analisamos o cliente-paciente ou sua provável doença?
Posso dar uma interpretação mediada, visto que por meio da análise das palavras, narrativa, ações, pensamentos e sonhos dos pacientes, encontramos a origem dos seus problemas psicológicos e trabalhamos na redução e eliminação do seu sofrimento psíquico. Se fosse exigida uma resposta concreta, posso então ir mais fundo, o paciente será analisado como pessoa, mas, sua queixa será o motor e estímulo para a análise se realizar. Penso, que dita afirmação se aplica a todos os tipos de observação, ensaio e diagnósticos, porque, como diz Sprüiell (1984), “o empreendimento psicanalítico seria intolerável sem suas motivações terapêuticas”. Para nós (psicanalistas), portanto, o objetivo da análise é fundamentalmente terapêutica, pelo menos enquanto essa motivação esteja latente e inscrita, onde sua concepção o analista não deve perder de vista seu aspecto básico do ''know-how'' necessário ao desempenho da profissão. Entramos assim no universo da interpretação, como uma produção única, individual, particular, integral e absolutamente necessária ao ser falante, e de algo que se não passar por esse processo ''sui generis'', pode ser prejudicial ao sujeito. Embora se manifeste na consciência, essa metodologia é fundamentalmente inconsciente, ou mais precisamente, inerente a função dela, que transcende todas as outras possibilidades. Trata-se de um desenvolvimento simbólico, junção de elementos ficcionais e reais ligados a uma determinada demanda da realidade do sujeito. Tanto para os psicanalistas do passado, quanto do presente, a leitura, observação, olhar e perspectivas da interpretação continua a ser a ferramenta terapêutica por excelência, como a ideal para utilização no contexto clínico. O objetivo dela é, deduzir pela técnica o que está impresso no inconsciente do analisando, que não serve para preconizar, persuadir, aconselhar, proibir ou permitir, incutir, induzir, insinuar ou fazer qualquer outra coisa que não seja guiar a elucidação de produzir às próprias respostas. É um ato de fala característico, investido de uma precisão e rigor. Utilizando as palavras do paciente, pela livre associação de ideias e pensamentos, destravamos o acesso ao inconsciente do indivíduo, acedendo à (possível) verdade da situação que nesse lugar se oculta de si. Dita criação não pode ocorrer sem as imprescindíveis associações do analisando, o que denota que o analista não é o único que pode forjar sua geração.
A intervenção do analista durante a psicoterapia pode se dar de diversas formas: solicitando recordações, perguntando, questionando, apontando, sublinhando, sugerindo possibilidades interpretativas do dizer, dando instruções guiadas, pedindo releitura do dito, e fazer inegavelmente interpretações do discurso apresentado. Assim, permitir que o paciente pense por si próprio, é uma premissa básica quando nos abstemos de aconselhar. Qualquer texto traduzido envolve inevitavelmente a interpretação do tradutor, na prática clínica, seguimos o princípio de que somos instrumentistas, tradutores do sujeito é da sua história, dos seus conteúdos conscientes e inconscientes. Dita perspectiva e pontos de vista, são de fato uma defesa contundente de que realizamos uma conversão atenta, flutuante para a linguagem do consciente, um lugar de domínio das palavras, que será guiado pela utilização de recursos teóricos e técnicos que estão além do inconsciente e da experiência da análise propriamente. Devemos, portanto, fornecer uma exegese após escutar o paciente, algo que desafia a visão global do consciente do esquadrinhado, motivando uma re-elaboração da sua forma habitual de perceber o mundo. Para tornar consciente um conteúdo reprimido, se faz necessário a instigação do recalque, provocar incentivo e estímulos capazes de patrocinar uma mudança positiva no psiquismo do paciente. Freud empregava habilmente o método, até vencer a resistência às suas recordações, esquivando-se assim dos efeitos negativos e antipáticos que incidem sobre o indivíduo, com o propósito de transportar o inconsciente para a consciência de forma menos traumática.
“Nossas lembranças — sem excetuar as que estão mais profundamente gravadas em nossa psique — são inconscientes em si mesmas.” Freud.
Na composição da sua obra, “Interpretação dos Sonhos”, Freud trata do tema diretamente, onde podemos elucidar que transcorria nesse aprofundamento uma utilidade diversa para sua aplicação que se liga com outros tipos de conteúdos latentes. Por outro ângulo, Lacan propõe outro olhar a essa interpretação, dizendo; que dito ato, não deve ter o objetivo senão de descobrir um significado oculto por trás de um sintoma, seja no ato falho, chistes e formações inconscientes, mas sim, de incomodar o sentido que eles sustentam para o paciente. Lacan prossegue; além deste procedimento involucrar o surgimento de uma mensagem inovadora, a representação dessa compreensão deve contribuir com o analisado, ajudar, de forma que ele possa escutar sua própria instrução e dada interpretação, que lhe será restabelecida, dobrada, invertida e devolvida do analista para ele. Este ofício em particular, conectado intrinsecamente com a vida e os seus significados, ampara o trabalho do analista, mais especificamente conduz a interpretação dos desejos dissimulados. “O inconsciente é um fato, enquanto se sustenta no próprio discurso que o estabelece”. Lacan. A matéria-prima que operamos é a linguagem do desejo, que opostamente a racional está recheada de confusões, enganos, descuidos e lapsos. Dita máscara da falsa consciência moderna que utilizamos diariamente, se envereda pelo lado escuro da nossa mente, uma forma adaptativa muito atual, que nos empurra para nos manter nas fronteiras das imposições sociais, é, são instintivamente dirigidas pelo princípio da realidade. Uma dualidade singular a todo ser humano, onde predominam dois propósitos; por um lado a vontade de suspeitar da verdade, é por outro, uma aspiração de encontrar na interrogação da própria dúvida um sentido impossível de especificidade e originalidade da nossa essência e existência. Seguindo dita comprovada atuação, será sempre o paciente dono da sua convenção e enunciação, implicando também ser o patrão das consequências que ampara. Nesta gangorra discursiva, haverá sempre às verdadeiras intenções, quanto um lugar enorme para a mentira, (mentira de si), com suas implicadas motivações conscientes, espaço para palavras vazias, inclusive para o silêncio. Assim, a interpretação deve ser formulada de modo a permitir ao analisando a inclusão das suas perspectivas pessoais, sempre multifacetadas por definição, nunca traduzidas para um crivo definitivo. A subjetividade do especialista, deve ser sempre o menos possível, erguida na elaboração enunciativa, onde a forma e o significado que lhe for possível incluir nesse momento, pondere o menor impacto sobre o discurso do paciente, e não das especulações interpretativas da análise. Destarte, deve ser aquela que estimule o desenvolvimento da cadeia significante, consequentemente, do trabalho a que ambos foram convocados.
“As produções do trabalho do sonho não são feitas com a intenção de serem entendidas.” Freud.
Para além dos significados de que tem consciência, às palavras do paciente têm sempre conotações adicionais e subjetivas.
“É a verdade do que esse desejo foi em sua história que o sujeito grita através de seu sintoma”. Lacan.
Na ciência da nossa prática, podemos afirmar que à interpretação está entre as mais contestadas e desaprovadas, há um contexto de oposições ao trabalho analítico, que suscita desconforto em algumas atividades médicas. Referidas resistências, radicam no centro da própria práxis psicanalítica, de forma que também desaprovamos o enquadramento que se impõe socialmente a tudo neste marco contemporâneo. A dificuldade em definir claramente o exercício analítico interpretativo, reside no lugar de cada analista; primeiro; em respeitar o indivíduo como um ser ímpar, incluindo seu sintoma, em segundo lugar; o método de exploração da sua queixa, (do paciente), que combina a teoria e a experiência, visando elaborar para si próprio uma explicação exclusiva das razões pelas quais elaboramos determinadas conclusões e diagnósticos, á partir do que ouvimos dele articular, é não pelos manuais que pretendem regular ditas interpretações. Às dissidências que sustentamos, principalmente de ordem teórica, como aportes às novas possibilidades e caminhos do trabalho psicanalítico, se atestam por si, é de muitas formas, razões que teoricamente sólidas e historicamente comprovadas são amplamente significativas para o exercício profissional. Para Freud, existe um elo de causalidade entre a interpretação e a resolução dos conflitos, este nexo, colocado ao nível da realidade, determina claramente o que efetivamente aconteceu, tanto ao nível da compreensão e cognição, quanto da simples coerência em aceitar dita verdade.
“Você pode saber o que disse, mas nunca o que outro escutou”. Lacan.
Porém, outros autores de expressiva aceitação desenvolveram e apoiaram afirmativamente nosso expediente, quando apoiam que a mente humana se compraz e, de certo modo se cura diante daquilo que percebe como autêntico e verídico na condição da sua vivência. Klauber explica isso com mais detalhamento; ''a psicanálise utiliza um sistema de justificação histórica para revelar a verdade''. Quase todos os pacientes, requerem que no seu processo de satisfação e cura seja inserida essa explicação memoriosa convincente; sem estas ferramentas, o analista estaria desorientado na escuta narrativa. No outro extremo, coexiste a intersubjetividade do relacional, onde Kohut, acrescenta; "defendo que dada a situação analítica como uma resposta confiável do analista aos seus pacientes, tais possam ser alcançados com excelentes resultados terapêuticos, se não mesmo ótimos, mesmo que as teorias do analista para compreender o processo terapêutico e avaliar a psicopatologia do paciente sejam imprecisas''. Quando Freud afirmou que a eficácia terapêutica era prejudicial ao avanço da psicanálise, ele estava enganado, sua declaração quanto ao chamado ''Furor Curandis'', (Furor Curandis foi o nome dado por Freud ao desejo do analista em curar. Este excesso de cuidado — bem-intencionado — pode se tornar abusivo, interferindo e impossibilitando o trabalho analítico, por pressupor uma valorização excessiva do narcisismo daquele que oferece dita ajuda), nenhuma patologia foi deixada de fora da psicanálise e, como resultado, passamos de um foco nas neuroses iniciais para um programa clínico abrangente, que cobre essencialmente todo o espectro da psicopatologia. O resultado disso; foi a definição de que a prática psicanalítica descobriu e desvendou na interpretação, uma fonte inesgotável de crescimento, que, ao mesmo tempo, impulsionou a abertura para possibilidades terapêuticas não disponíveis na interpretação clássica.
“Cada um alcança a verdade que consegue suportar”. Lacan.
Assim, concluo; que a interpretação não deve ter como objetivo “explicar ou declarar o significado de algo”. (RAE, 2001). Uma interpretação justa e fundamentada será quase sempre capaz de traduzir no sentido de criar uma passagem para a identificação dos símbolos do sintoma para outra linguagem. Um ato que produz efeitos através do esgotamento do conteúdo, daquele que ficou paralisado e estacionário, permitindo uma produção inédita e possibilitadora da comunicação de uma coisa a outra, capaz de quebrar às cíclicas repetições do sujeito, que tanto angustiam e provocam dor emocional. O analista, como alguém que interpreta, se situa no sentido da realização de uma arte, está para ela como alguém que interpreta uma obra, aproveitando aqui o uso que Freud faz da expressão; ''arte de interpretar''. Sua prática, visa a produção da suposta ''verdade'' do sujeito, mediante uma leitura do inconsciente, que emerge da transferência; (A transferência, é um fenômeno que ocorre no setting analítico. Trata-se de uma parte muito importante, obrigatória e fundamental a formação da aliança terapêutica, por consequência da própria análise acontecer de fato, cuja existência não pode ser assegurada fora do dispositivo analítico). Estas formas de entender a interpretação não são exclusivas dos acontecimentos que podem ocorrer em análise, e que têm a ver com certos achismos de sentido, que serão sempre certamente do analisando, tidos como provisórios, mais prontos para ser re-significados. A interpretação, em vez de procurar encontra e produz, não fecha, abre. Os significados do ato interpretativo são múltiplos, por vezes contraditórios, paradoxais e utópicos, por vezes, se associam mutualmente. Também, não pretendo aqui responder fechando, lacrar a própria questão que estará sempre além da minha finita compreensão, interminavelmente mais ambiciosa do que parece. Por esta razão, invocarei Freud com suas frases que sempre iluminam nosso trabalho: “Uma análise termina quando analista e paciente deixam de encontrar-se para a sessão analítica”, dita em análise terminável e interminável (1937).
Ao poema;
Em linha reta — Álvaro de Campos.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Interpretação;
Álvaro de Campos retrata a hipocrisia de uma sociedade que aparenta e deseja ser vista como perfeita. Constata que não tem par neste mundo. Revela e aceita ter defeitos, se diferencia do resto da sociedade, que só conta vantagens e apresenta virtudes. Se conceitua como um ser solitário, num mundo onde predomina o fingimento social, sendo ele a única pessoa capaz de reconhecer suas próprias fraquezas e imperfeições. Convencido de que a sociedade não irá abandonar tal atuação, é que não tem disposição para enfrentar a verdade, sugere que pelo menos algumas deficiências e fraquezas sejam assumidas. Se a violência dos pactos sociais não permitem que sejam expostos, que pelo menos covardias e infâmias o sejam. Ao chamá-lo de Poema em linha reta, é irônico é utópico, se postula como crítico daqueles que vivem sempre nesta postura, aqueles que na sua compreensão não fogem, nem sequer a possibilidade da expressão contraditória as regras morais que oprimem seus desejos. Para ele, a vida não pode ser representada por essa linha de recalques, tem que existir a tortuosidade, os altos e baixos, erros e acertos, imperfeições, contradições, aceitação e enfrentamento.
Até breve, Dan Mena. Membro Supervisor do Conselho Nacional de Psicanálise desde 2018 - CNP 1199 Membro do Conselho Brasileiro de Psicanálise desde 2020 - CBP 2022130
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